Quatro experts discutem sobre a reduzida presença de mulheres no campo da computação.
Era diferente. Em 1974, por volta de 70% dos alunos de ciência da computação do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) eram mulheres. Em 2016, esse patamar caiu drasticamente para 15%. Transformando números em palavras: as mulheres foram quase banidas da tecnologia. O que está por trás disso? Quais as consequências para o futuro de uma ciência tão masculina?
Nas últimas edições, Tpm vem discutindo como a presença feminina pode ajudar a construir um futuro mais humano e igualitário. Essa conversa avançou para o palco da Casa Tpm, num debate que juntou três exceções que comprovam a regra. Contornando preconceitos, assédio e a falta de incentivos, Buh D’Angelo, 23 anos, programadora e fundadora da InfoPreta, Letícia Pozza, 29, cientista de dados que usa os códigos para decodificar o comportamento humano, e Daniela Bogoricin, 37, diretora de estratégia do Twitter no Brasil, conversaram sobre os desafios que encararam para atingir o topo da carreira.
No bate-papo mediado pela jornalista Maria Prata, 39, que você lê a seguir, o trio mostrou por que os anos que virão necessitam de uma participação mais equilibrada entre homens e mulheres nas decisões sobre internet, privacidade na rede e inteligência artificial e que a tecnologia pode ser, sim, mais feminina.
Mulheres na tecnologia: por que tão poucas?
Buh D’Angelo. Tecnologia é tudo o que inova. Se a porta só fechava com a ajuda da sua mão e você inventa algo que faz ela fechar sozinha, pronto: é tecnologia. Os professores dos cursos que frequentei não explicavam isso desse jeito simples e esse é um dos motivos para uma sala de 60 alunos, que geralmente começa com oito mulheres, terminar com uma se formando. Ser mulher é ouvir constantemente a frase: “Isso é muito difícil para você”.
Letícia Pozza. Mas nem sempre foi as-sim. Quando a gente olha para trás, percebe que o número de mulheres em áreas como ciência da computação, programação e matemática era muito maior. A dificuldade de entrar no mercado de trabalho foi uma das coisas que nos afastou. Enquanto os homens eram contratados para cargos técnicos, as mulheres tinham que se contentar com funções secundárias.
Maria Prata. Em 1974, 70% da turma de ciência da computação do IME-USP eram mulheres.
Buh D’Angelo. Uma das coisas mais comuns que vi acontecer, tanto na indústria quanto na minha faculdade, era isso, a falta de estímulo, de empatia com a outra pessoa, porque você está lá para aprender. Então, fala para o professor que está com uma dúvida. E ele diz [imitando voz de homem]: “Mas você não estudou? Pô, todo mundo aqui sabe e você não”. Aí já começa a cair o nível de interesse. Toda hora é uma porta fechada na sua cara. Porque não importa, você pode estudar o quanto for, pode ser a melhor da sala, da empresa, de onde estiver, sempre vai ter um cara ali que vai falar: “Pô, mas você não sabe isso?”. Lembro de algumas vezes ver professor meu falando para aluna: “Você quer passar? A gente pode sair, fazer um negocinho, e eu te dou uma nota pra isso”. Sério, foi a coisa mais bizarra que vi na minha vida. Depois disso percebi que não tinha como continuar o curso. Mas segui porque sou cabeça dura. [Risos.]
Daniela Bogoricin. Acho importante lembrar que ainda existimos na tecnologia e vamos existir cada vez mais. No Twitter, por exemplo, 35% da força de trabalho é composta por mulheres que ocupam todos os tipos de cargo, inclusive os mais altos. Mas acho que existe um viés inconsciente que faz com que as pessoas só se lembrem dos homens.
Buh D’Angelo. Vi muitas meninas que insistiram na área acabarem se masculinizando para se protegerem dos abusos que acontecem. No meu caso, desde criança sempre fui viciada em programação, robótica, ciência. Quando chegou a hora de escolher o que fazer da vida, meus pais me incentivaram a fazer comunicação visual. Eu falava: “Mas, pai, eu não sei desenhar nada”. E ele respondia: “Você tem que ir para lá, porque é uma área feminina, e você é mulher, que tem delicadeza”. E eu rebatia: “Mas, pai, olha o meu tamanho, você acha que eu sou delicada?”.
Letícia Pozza. Diferentemente dos meninos, nenhuma de nós foi incentivada a gostar de robótica ou brincar de Lego quando criança, né? Eu tive muito receio de entrar nessa área porque era difícil enxergar algum potencial. Não via mulheres palestrando nos eventos que frequentava nem na direção das empresas em que trabalhei. Essa falta de representatividade é um grande desincentivo.
O fim da privacidade
Daniela Bogoricin. Como estrategista de marca, parte do meu trabalho é trazer o olhar das pessoas para a empresa. Outra parte é fazer com que as marcas tuitem melhor. Testamos hipóteses e chegamos em ideias malucas, que incrivelmente a equipe de engenharia sempre consegue realizar. É muito bacana poder olhar o que está acontecendo no mundo real e transformar isso em soluções para as pessoas.
Letícia Pozza. Só que nada é de graça na internet. Quando recebemos uma indicação da Netflix com o filme de que vamos gostar de assistir, por exemplo, pagamos com nossos dados. E se não entendermos que dados são esses que as empresas têm sobre nós, vai chegar um momento em que elas vão saber mais da nossa vida do que a gente mesmo. Em uma escala global, isso pode se transformar em uma arma muito poderosa. Os algoritmos já estão decidindo por nós e não sabemos ainda se o que eles estão fazendo é bom ou ruim.
Buh D’Angelo. Deixando bem claro: não existe privacidade. A partir do momento em que você liga o celular, tudo está sendo gravado pelo Google, por exemplo. E vocês autorizaram isso. Então, qualquer coisa que vocês falarem aqui vai aparecer como anúncio. Gente, vocês, eu, ninguém tem privacidade, deixando tudo bem claro.
Quem tem medo de inteligência artificial?
Letícia Pozza. Quando a gente fala em algoritmo as pessoas têm medo. Parece algo muito tecnológico, mas são apenas regras que um ser humano criou, não um robô. O que devemos discutir é se as pessoas que criam essas regras são capazes de ensinar esses algoritmos a buscar diversidade. Vou dar um exemplo: imaginem que a gente precise criar um algoritmo para selecionar os melhores CEOs do mundo. Se a gente fizer esse estudo nos Estados Unidos, onde mais de 80% dos CEOs são homens brancos, com mais de 1,80 metro de altura, dificilmente o algoritmo vai
selecionar uma mulher ou um homem negro. Então precisamos de pessoas que entendam que quando a gente coloca as regras completamente baseadas no histórico que temos, não estaremos utilizando os melhores parâmetros do algoritmo, pois ele vai perpetuar esse histórico desigual. Não é a tecnologia. São as pessoas.
Buh D’Angelo. A inteligência artificial é uma coisa incrível. Quem começou essa história foi a IBM, com o Watson, que é tipo o cérebro artificial criado por eles. Ele recebe um código inicial e daí pra frente aprende sozinho, vai construindo um raciocínio para tudo. E os códigos que o Watson cria são muito loucos. O Facebook também criou uma inteligência artificial. Uma não, duas. Fez uma inicialmente e depois outra mais aprimorada. Mas eles esqueceram que tudo que é criado evolui – e foi justamente o que aconteceu com essas duas inteligências artificiais. Elas evoluíram e criaram uma comunicação entre elas, que o ser humano não entendia. Aí o negócio ficou louco, porque as máquinas começaram a se comunicar e os seres humanos não tinham como decifrar. E o que eles fizeram? Eu choraria, né? Eles desligaram as máquinas!
Letícia Pozza. Eles tiraram da tomada.
Tecnologia, feminismo e revolução
Buh D’Angelo. Vou falar a real: na programação, quando você pega um código escrito por um cara, você não entende nada, o negócio é difícil, ele não sublinha, não identifica nada. Mas quando você pega o de uma mulher, ela pensou no próximo, está tudo descrito, bonitinho, é maravilhoso. Eu, quando vou programar e pego o trabalho de uma mulher, penso: “Deus, obrigada por essa graça”. [Risos.]
Letícia Pozza. Existe mesmo um olhar feminino que é muito claro de identificar. Eu tenho uma equipe muito pequena e muito especializada, somos cinco mulheres e seis homens. É legal porque a gente se complementa. Quando a equipe estava muito mais masculina e as mulheres eram minoria, a gente tinha um foco maior em negócio, que é uma característica do masculino. Aquela coisa de fazer, de entregar, às vezes sem a sensação do propósito por trás. As gurias da nossa equipe entregam um outro lado, um pouco mais humano. Esse equilíbrio faz a gente ser capaz não só de realizar coisas muitos legais, com essa energia que às vezes os guris entregam, como de olhar para trás, ver o que a gente fez certo, o que fez errado, e planejar melhor o futuro.
Daniela Bogoricin. É porque as mulheres se apaixonam pelo desafio, e não pela solução. Como o ponto de partida do meu trabalho são pessoas, o olhar feminino é fundamental. As mulheres estão muito mais ligadas no que está acontecendo no mundo. Elas olham para ele de uma forma diferente, lutam de uma forma diferente, pensam no processo, entendem o que a gente é hoje para pensar o futuro depois. Meu time tem mulheres estrategistas e um homem engenheiro. Quando eles se juntam, é uma loucura. Ele quer a solução e elas querem entender como isso muda o mundo, de que maneira vai impactar as pessoas e o que elas estão pensando.
Letícia Pozza. A ciência de dados pode ajudar a entender a raiz de vários problemas. Para citar um caso bem específico que envolve o que estou falando: fizemos um trabalho em uma empresa grande de metalurgia e identificamos a causa de poucas mulheres chegarem a cargos de liderança. A percepção inicial era a de que não havia mulheres na empresa, mas quando começamos a analisar os dados, vimos que elas eram contratadas, mas não permaneciam. Isso ajudou a enxergar as verdadeiras causas do problema. É uma outra forma de usar a tecnologia a nosso favor.
Daniela Bogoricin. No Twitter, temos observado esse movimento das mulheres, as pautas feministas crescendo muito. Como é uma plataforma aberta e pública, temos uma rede de celebridades, pessoas comuns, ativistas, gente de todos os tipos. Isso possibilita que as pessoas se identifiquem, se conectem e montem um movimento comum, o que era impensável há algumas décadas. Não existia um lugar aberto, em que as pessoas podiam mostrar o que são e no que acreditam. Agora podemos lutar, não só dentro de uma comunidade, de um país, mas globalmente.
Buh D’Angelo. E a tecnologia ainda vai ajudar muito as mulheres. Só precisamos entender que existem vários tipos de feminismo. Inclusive o que te contempla, mas não a amiguinha do lado, nem a outra, nem o outro. Depois de entender direito o que a gente quer, é só usar a força de união da tecnologia para transformar o mundo.
Por JULIA FURRER 03/09/2018
Leila Bogoricin
Arquiteta e corretora, iniciou suas atividades no mercado imobiliário em 1972.
Sua expertise neste mercado abrange todo o ciclo imobiliário, desde a assessoria na compra do terreno, passando pela gestão do produto, legalização, projetos, elaboração e execução do plano de ação comercial e de marketing dos empreendimentos. Com experiência no mercado brasileiro e internacional, foi diretora comercial de imobiliária grande porte, durante mais de 10 anos, se desligando daquela empresa em abril de 2015. Era responsável pela operação de mais de 20 lojas, planejamento estratégico e ações táticas comerciais tanto para o mercado primário (lançamentos) quanto para o mercado secundário (usados).