Medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do aludido coronavírus
INTRODUÇÃO
A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou, no dia 11 de março de 2020, pandemia do Covid-19 (coronavírus), presente em todos os continentes. Inegável o impacto da disseminação desse vírus, não apenas no setor da saúde, mas igualmente na economia e nas relações jurídicas em todos os âmbitos (contratos, trabalhista, consumidor, dentre diversas outras).
No Brasil, antes mesmo do formal reconhecimento da pandemia, a Lei federal n.º 13.979 de 06 de fevereiro de 2020 dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do aludido coronavírus.
No Estado do Rio de Janeiro, foi reconhecida a situação de emergência e estado de exceção na saúde pública, através do Decreto n.º 46.973 de 16 de março de 2020, publicado em 17.03.2020, estabelecendo medidas para enfrentamento da propagação e regulamentando, inclusive, a aludida n.º Lei 13.979/2020.
Dias depois, através do Decreto nº. 46.980, de 19 de março de 2020, adveio atualização às medidas de enfrentamento, ampliando as restrições. Diante dos impactos no cotidiano das empresas e dos indivíduos, elaboramos, de forma sucinta e sem a pretensão de exaurir todas as consequências deste atual cenário, uma compilação de recomendações no âmbito de várias relações jurídicas em virtude das repercussões decorrentes da pandemia decorrente do Covid-19.
RELAÇÕES CONSUMERISTAS
Nos termos da legislação vigente, a responsabilidade dos prestadores de serviços e fornecedores de produtos nas relações consumeristas é objetiva e solidária, isto é, independe da presença de culpa para configurar a necessidade de ressarcimento pelos danos causados aos consumidores. Não obstante, estamos num momento extremamente peculiar, o qual exige que todas as relações estejam em consonância com o princípio da Boa-fé Objetiva e da Solidariedade por todas as partes, almejando o equilíbrio das relações.
Casos fortuitos e de força maior podem ser utilizados pelos prestadores e fornecedores como argumentos de exclusão de responsabilidade quando houver falha ou impossibilidade na prestação do serviço ou entrega do produto. Contudo entendemos que deverão ser adotadas, dentro do possível, medidas com o intuito de mitigar, ao máximo, os danos causados, mormente através de comunicação direta com os consumidores, discriminando eventuais problemas no cumprimento do contrato, em atenção à transparência e ao direito de informação.
Ante as diversas restrições impostas pelos órgãos públicos, verifica-se crescimento exponencial de cancelamentos de produtos ou serviços, como passagens aéreas, ingressos de eventos além de outros. Nestas hipóteses, primeiramente, há de se buscar denominador comum dentro das peculiaridades do caso concreto, como, por exemplo, a alteração da data, prorrogação do vencimento ou que o valor dispendido seja convertido em crédito para utilização posterior, evitando-se demandas judiciais e reclamações em órgãos de proteção. Entretanto, não sendo possível atingir um consenso, caberá ao prestador e/ou fornecedor avaliar a aplicação das penalidades estabelecidas no contrato e, ao consumidor, pleitear o direito que entende fazer jus perante o PROCON e, até mesmo, judicialmente.
Outro ponto de suma relevância que vem sendo relatado em diversos locais é o exponencial aumento do preço de determinados produtos, como álcool-gel e máscaras descartáveis. Em que pese vigorar a livre concorrência, que deve ser sopesada com outros preceitos constitucionais de forma que, aumentos exorbitantes (por exemplo, superior a 50%) que configurem práticas abusivas, devem ser denunciados ao PROCON mediante a apresentação da nota-fiscal para apuração de eventuais ilícitos.
PLANOS DE SAÚDE
Diante do momento de extrema vulnerabilidade na qual a sociedade se encontra é importante que as operadoras de planos de saúde adotem medidas necessárias para atuar na presente situação, preservando pela saúde e proteção de seus beneficiários.
Nesse sentido, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) regulamentou a atuação das operadoras de planos de saúde no que atine à cobertura obrigatória e utilização de testes diagnósticos para infecção pelo coronavírus, mediante a edição da Resolução Normativa nº 453, publicada em 13 de março de 2020, a qual determina, nos moldes do art. 3º, a inclusão do exame para a detecção do COVID-19 dentro do rol de procedimentos obrigatórios para os beneficiários de planos de saúde. Assim, o paciente que se enquadrar na definição de caso suspeito ou provável de doença pelo coronavírus deverá ter seus exames de diagnóstico cobertos pela seguradora.
Caso haja a recusa da operadora em custeá-lo, o beneficiário deverá denunciar à ANS, bem como adotar as medidas judiciais cabíveis para sua realização, valendo destacar que se aplica o Código de Defesa do Consumidor (exceto aos de autogestão), sendo considerada abusiva qualquer cláusula que restrinja o exame/teste para constatação de doença ou modo de tratamento. Ademais, os testes diagnósticos para infecção pelo coronavírus deverão estar disponíveis aos beneficiários de planos de saúde com segmentação ambulatorial, hospitalar ou referência, a ser realizado nos casos em que houver indicação médica, de acordo com o protocolo e as diretrizes definidas pelo Ministério da Saúde.
Desse modo, estabeleceu-se que cada operadora de plano de saúde definirá a melhor forma para atendimento de seus segurados, podendo realizar, por exemplo, exame domiciliar, consulta médica remota, esclarecimentos por meio telefônico, desde que não restrinja a realização dos testes de diagnóstico e, tão pouco, o acesso ao tratamento conforme orientações médicas.
CONTRATOS
No campo contratual, em regra, em decorrência do princípio pacta sunt servanda, os contratos devem ser cumpridos. No entanto, essa força obrigatória com a vinculação das partes encontra no ordenamento jurídico exceção pela Teoria da Imprevisão, haja vista que o contrato deverá ser cumprido rebus sic stantibus, ou seja, “estando as coisas como estão”.
Logo, fatalmente, em virtude da pandemia, à luz do princípio da solidariedade e da boa-fé objetiva, será possível uma revisão ou até mesmo a resolução contratual. Entendemos que, inegavelmente, a pandemia será tipificada como fato inevitável, ou seja, caso fortuito ou força maior, nos termos do ordenamento jurídico pátrio (art. 393 do CC)1 .
Aconselha-se assim o diálogo entre as partes, com elaboração de aditivo contratual, ainda que de caráter provisório e enquanto perdurar a pandemia, no intuito de evitar uma excessiva onerosidade ou extrema vantagem de apenas uma parte. Por outro lado, isso não sendo possível, oportunamente, a revisão deverá ser judicial, não se admitindo alteração unilateral.
Sem isso, poderão ocorrer situações de inadimplemento de obrigações contratuais. Em condições ordinárias, o ordenamento jurídico estabelece medidas para restabelecer o equilíbrio contratual, respondendo o devedor por perda e danos, juros de mora, correção monetária e honorários advocatícios.
No entanto, quando tais prejuízos decorrem de caso fortuito ou de força maior, a responsabilidade do devedor deverá ser excluída, salvo expressa previsão contratual em sentido contrário.
EMPRESARIAL
“A livre iniciativa empresarial é uma forma de liberdade individual e, mais especificamente, uma modalidade de livre iniciativa econômica, aplicada às situações de empreendedorismo e atuação econômica. É também um dos esteios da Constituição econômica brasileira de 19882 ”.
Na atividade econômica em sentido estrito, a intervenção direta do Estado deve ser excepcional, e só se justifica, quando “necessária aos imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei3 ”.
Ainda, o Estado também detém o poder de intervir indiretamente sobre a atividade econômica para normatizá-la, exercer o poder de polícia e fomentar atuações privadas consideradas socialmente desejáveis. Naturalmente, a intervenção do Estado sobre a atividade econômica não está livre de barreiras constitucionais.
Pelo contrário, além das referidas normas que regem a atividade econômica – livre iniciativa e livre concorrência – o desempenho da função estatal há de observar várias outras limitações, como respeito à proporcionalidade, legalidade e igualdade4 .
Nesse cenário, tem-se como regra geral a liberdade dos particulares para estabelecerem atividades econômicas, porém, resguardados os direitos de terceiros ou interesses relevantes da comunidade, leia-se, no presente momento, a justiça social através da proteção e defesa da saúde, somada ainda aos princípios da solidariedade e da função social da propriedade.
Evidentemente, tem-se na atualidade uma ponderação entre interesses e necessidades, de modo que, em observância ao Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade, o Estado está atuando na tentativa de minimizar os danos à saúde pública, até o presente momento, dentro dos parâmetros legais e da sua competência. Assim, eventual decisão do Estado determinando, por exemplo, o fechamento com restrição total de uma atividade empresarial, que ultrapasse a mera recomendação, implicará na necessidade de a empresa demonstrar o caráter essencial da sua atividade, a fim de não ser atingida pelo comando legal.
Em outros termos, a essencialidade da atividade econômica e a sua manutenção devem ser respeitadas pelo Estado se o serviço oferecido/produto for de caráter necessário à proteção de bem jurídico maior.
RELAÇÕES TRABALHISTAS
É relevante observar se houve adoção de medida restritiva (isolamento ou quarenta), seja de forma ampla ou parcial. No Rio de Janeiro, por exemplo, a partir de 17.03.2020, pelo prazo de 15 dias, houve a suspensão de diversas atividades coletivas, de forma que, nesses casos, a legislação foi expressa ao enquadrar o período de ausência como falta justificada.
Portanto, podemos considerar como causa interruptiva da relação de emprego, fazendo jus o empregado ao recebimento de salário. Naturalmente que verbas decorrentes da efetiva prestação de serviços, como auxílio transporte e vale alimentação, s.m.j., poderão ser descontadas. Quanto às demais atividades, é importante estar atento à adoção de novas medidas restritivas que podem surgir a qualquer momento, seja pelo Ministério da Saúde ou por gestores locais de saúde.
Além disso, recomenda-se que, na hipótese de atestado médico, seja acolhido, anotando-se o período como falta justificada. Aqui, importante ressalvar que o empregador apenas deverá arcar com os primeiros 15 dias, acima disso, o empregado fará jus ao auxílio doença. Como norma geral, é atribuição própria e relevante do empregador a preservação da higidez e da segurança do ambiente de trabalho, sob pena de eventual discussão acerca de responsabilização civil ou causa para rescisão indireta5 .
Naturalmente, tal regra deverá ser mitigada para aqueles que trabalham na área de saúde ou serviços essenciais, sendo fundamental o fornecimento de equipamento de proteção contra o COVID-19, conforme orientações da OMS.
Aqui, dentro do possível e de comum acordo, recomenda-se adoção de medidas para proteção da saúde do empregado, como o trabalho em casa (home office) ou redução da jornada, com horário de entrada e saída fora do período de maior trânsito (rush), especialmente se já houver banco de horas ou acordo de compensação, de forma a evitar viagens e maiores deslocamentos.
A elaboração de instrumento coletivo prevendo a suspensão contratual ou a redução do salário durante o período de afastamento também é medida legitima para regular essa situação6 . Outra possibilidade seria o estabelecimento das férias coletivas, sendo razoável a mitigação da regra de comunicação ao Ministério do Trabalho, por motivo de força maior.
Além disso, é aconselhável seguir as orientações da OMS, devendo o empregador promover a constante higienização do ambiente de trabalho e fornecer álcool-gel em locais visíveis7 .
Não sendo possível adoção de tais medidas, especialmente para os empregados enquadrados no grupo de risco acentuado, é aconselhável afastamento nos termos da Lei n.º 13.979/2020, ou seja, interrupção do contrato com recebimento do salário.
AUXÍLIO DOENÇA
No âmbito previdenciário, podemos destacar que o auxílio-doença será devido ao segurado que ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos. Aliás, há previsão específica no ordenamento jurídico pátrio de casos de doenças com segregação compulsória, nos moldes do art. 23 da Lei n.º 8.213/91.
Sem dúvida, uma questão que fatalmente gerará muita celeuma será o eventual enquadramento como acidente de trabalho daqueles contaminados em decorrência do labor.
O primeiro problema será a questão de fato, isto é, se a doença foi efetivamente adquirida no exercício da atividade ou não, mormente diante do quadro de contágio comunitário.
Em alguns casos poderá ser considerada como razoável tal presunção, como os profissionais de saúde. Ademais, a legislação equipara ao acidente de trabalho a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade.
Logo, evidenciado que o COVID-19 foi contraído em decorrência do trabalho, há de ser emitido o CAT (Comunicado de Acidente de Trabalho) e o afastamento enquadrado na espécie acidentária.
Nesses casos, os empregados afastados pelo auxílio-doença acidentário, terão seus contratos suspensos devendo permanecer o recolhimento do FGTS, bem como farão jus à estabilidade provisória de 12 meses.
CONDOMÍNIOS
Diversas medidas estão sendo adotadas pelos poderes públicos, no intuito de prevenir o contágio do COVID-19, cabendo ressaltar os recentes Decretos editados no Estado Rio de Janeiro, prevendo restrições e recomendações, dentre as quais, as pessoas evitarem ao máximo de saírem de suas residências.
Diante desse cenário, consequentemente, aumenta a necessidade de cuidados a serem adotados nos prédios. Muitos condomínios são dotados de diversas áreas comuns, especialmente para lazer. Não se pode olvidar que tais áreas estão englobadas no direito de propriedade dos condôminos, podendo os mesmos delas usufruir.
Contudo, como não há direito absoluto no ordenamento jurídico, ponderandose preceitos fundamentais, tal princípio há de ser balanceado com outros de mesma relevância constitucional. Assim, caberá ao síndico, em conjunto com o Conselho Consultivo (quando houver), na qualidade de representante do condomínio, zelar pela preservação dos interesses comuns, leia-se, da coletividade, mormente da saúde dos condôminos, razão pela qual, em consonância com as restrições e recomendações previstas, há de ser:
• Vedado o acesso a locais que permitam realização de eventos e atividades que envolvam aglomeração de pessoas, mormente em ambientes fechados, como aulas coletivas, sala de cinema, piscinas, quadras esportivas, academias, brinquedotecas, saunas, salões de jogos e de festas, churrasqueiras, além de várias outras;
• Não sendo possível o fechamento de locais abertos, necessárias recomendações pela sua não utilização, com a conscientização dos moradores acerca dos riscos;
• Disponibilizado nas áreas comuns orientações fornecidas por órgãos oficiais acerca do combate e prevenção do COVID-19, além de colocação de álcool em gel nas áreas estratégicas (próximos a elevadores e portarias, por exemplo), e reforço nos procedimentos de limpeza e higienização nas áreas comuns;
Por fim, entendemos que a adoção de qualquer medida pelo síndico há de ser previamente comunicada e justificada a todos os condôminos, além de que, ciente da existência de morador com o COVID-19, os demais condôminos deverão ser cientificados, contudo, preservando a identidade daquele. Tais medidas prezam pela transparência nas relações condominiais.
RELAÇÕES FAMILIARES
O atual cenário, excepcional, gera consequências não apenas de âmbito médico e econômico, como também nas próprias relações familiares, mormente diante do confinamento imposto em vários locais do mundo.
O distanciamento social e isolamento pessoal afeta a todos. Não obstante, maior atenção deve ser dada às pessoas que necessitam de apoio para os cuidados do dia a dia, mormente as pessoas com deficiência e os idosos, inclusive, muitos desses integram o grupo de risco.
Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas, em 17/03/2020 lançou um alerta mundial sobre o abandono dessas pessoas durante a crise instaurada8 . Neste ponto, ressalte-se a liberação, em caráter excepcional e enquanto durar a pandemia do COVID-19, da telemedicina9 pelo Conselho Federal de Medicina – CFM. Tal procedimento tem como um dos – mas não único – principais beneficiários, pessoas com deficiência e pessoas enquadradas no grupo de risco – como idosos – já que reduz drasticamente o risco de contágio e permite que tais indivíduos não sejam deixados de lado.
A Constituição Federal impõe ser dever do Estado, da sociedade e da família o cuidado com essas pessoas. Dessa forma, imperioso se faz que o Estado tome medidas sociais de proteção para garantir o fornecimento de todo suporte necessário durante esta crise.
Além disso, em relação às crianças e adolescentes, é igualmente importante que os responsáveis pelos cuidados adotem medidas que preservem aqueles, inclusive mediante adaptações, ainda que temporárias, aos regimes de convivência, como a modificação dos dias e horários acordados a depender da nova rotina dos responsáveis. Assim, percebe-se que também nas relações familiares é de suma relevância o diálogo para atingir um equilíbrio de forma a preservar pelo bem-estar e saúde dos membros de nossa família que, em momento tão delicado, sem sombra de dúvidas, têm sua vulnerabilidade ampliada.
CONCLUSÃO
Enfrentamos um momento completamente excepcional e delicado, jamais vivenciado pela sociedade contemporânea, que se modifica a cada dia, exigindo constantes adaptações nas nossas relações, seja em qual âmbito for.
É importante o acompanhamento por todos, sejam empresas ou indivíduos, dos desdobramentos da pandemia do Covid-19 a fim de que possamos adotar ações complementares, que preservem tanto a saúde das pessoas, principalmente as com a vulnerabilidade majorada, como a economia doméstica e global, cabendo buscar o auxílio de profissionais capacitados diante de cada caso concreto.
Dessa forma, o escritório Malka Y Negri Advogados seguirá acompanhando de perto a evolução do atual cenário e seus desdobramentos no cotidiano da sociedade a fim de fornecer a orientação necessária a todos os seus clientes.
Este ensaio, tem como finalidade, passar a você, uma posição técnica, sensível e segura sobre cada um dos temas abordados.
FONTE: MALKA Y NEGRI ADVOGADOS