A análise sistemática do Código Civil é medida que se impõe, dada à sua grande quantidade de livros e capítulos a fim de que seja alcançada a devida interpretação da lei, culminando no alcance da norma.
Sobre o tema eis a lição de San Tiago Dantas:
“(…) a ciência jurídica ergue sobre o material das normas um costume que cai sob os seus princípios, inclusive nas normas. Ergue seus conceitos, cria os seus credos doutrinários que repercutem sobre a legislação, que costuma ser redigida em forma mais didática, não dando apenas os comandos secos – porque a doutrina dela cria o sistema -, mas descrevendo institutos, dizendo, por exemplo, ‘a compra e venda está perfeita e acabada quando as partes combinarem o preço, a coisa e o momento do pagamento’ Onde está a norma jurídica? Temos que fazer um esforço lógico para extraí-la”.
(…)
Esta feição do legislador moderno que prefere escrever de uma maneira mais discursiva, mais didática, em vez de adotar um estilo imperativo do legislador antigo, faz com que precisemos de um trabalho lógico para extrairmos dos nossos textos de lei os comandos que nele estão inclusos. Mas desde o momento que o façamos, descobriremos quais são as normas que ali estão inclusas.” (Programa de Direito Civil, San Tiago Dantas, Editora Forense, 3ª edição, pgs. 36/37).
Considerando que o atual Codex ainda se encontra em franca maturação do ponto de vista exegético, é natural constatar divergências interpretativas sobre diversos textos legais, ainda mais quando tais divergências envolvem áreas distintas do Direito Civil, como é o caso das questões envolvendo o Direito de Família e o Direito das Sucessões, cujos institutos – embora bem definidos ao longo de séculos de aprimoramento – se entrelaçam de maneira a gerar repercussões mútuas.
Não é nova a divergência de interpretação quanto à partilha dos bens entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do de cujus quando estabelecido o regime da comunhão parcial. Tal divergência tem como primordial fator a truncada redação dada pelo legislador ao inciso I, do art. 1.829 do CC/2002, transcrito a seguir:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
Antes da análise das correntes doutrinárias e jurisprudenciais sobre a concorrência entre descendentes e o cônjuge supérstite no mencionado regime de bens, é necessário lembrar que ao cônjuge casado no regime da comunhão parcial de bens – tema aqui tratado – está garantida a meação, ou seja, o equivalente a 50% (cinquenta por cento) dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, nos termos do art. 1658 do CC.
Além disso, é igualmente válido esclarecer, que os bens particulares são aqueles que o cônjuge adquiriu antes do início do casamento ou então na vigência da relação marital, mas de forma não onerosa, ou seja, através de herança ou de doação, por exemplo. Por outro lado, os bens comuns devem ser entendidos como os adquiridos onerosamente na constância do casamento.
Esclarecido o panorama do tema em questão, retornemos à análise do dispositivo legal relativo aos bens deixados pelo de cujus no que se refere ao regime da comunhão parcial.
Ao longo dos anos, diversas correntes surgiram aplicando interpretações distintas, e muitas das vezes contrárias à parte final do aludido dispositivo. No presente artigo, vale mencionar os três principais entendimentos defendidos tanto por doutrinadores como por certos Ministros do STJ.
A primeira corrente sustenta que o cônjuge supérstite concorre com os descendentes do falecido tanto em relação aos bens comuns quanto aos particulares, isto é, todo o acervo patrimonial da herança.
Já a segunda corrente, defendida no STJ pela Ministra Nancy Andrighi, entende que o cônjuge sobrevivente somente irá herdar sobre os bens comuns. Isso ocorre, pois, defende que deve ser respeitada na morte o que foi escolhido em vida.
Explica-se melhor. Ao contrair núpcias os nubentes optam pelo regime de bens conforme se enquadre melhor no planejamento familiar. Assim, quando escolhem o regime da comunhão parcial de bens, decidem que em caso de Divórcio somente os bens comuns se comunicarão. Com isso, os bens particulares não integrarão o patrimônio do casal.
Assim, essa corrente tem como principal pressuposto a manutenção da vontade dos cônjuges quando do casamento.
Por fim, a terceira corrente, diametralmente oposta à anterior, assevera que somente em relação aos bens particulares que o cônjuge sobrevivente irá concorrer com os descendentes. Esse entendimento foi o adotado pela III Jornada de Direito Civil, com edição do Enunciado 270.
A 1ª e 2ª Turmas do STJ ao longo dos anos adotaram posições contrárias sobre o tema, o que, consequentemente, acarretou em enorme insegurança jurídica às partes, já que em situações análogas as decisões destoavam.
Em razão da divergência de entendimentos entre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça – cuja missão é assegurar a aplicação uniforme da lei federal, interpretando a norma de modo a preservar ao máximo a lógica e a unidade do sistema – a 2ª Seção do referido Tribunal foi chamada a se manifestar, tendo, enfim, estabelecido parâmetros para novos julgados.
Com isso, a 2ª Seção, por maioria de votos, tendo sido a Ministra Nancy Andrighi vencida no julgamento, entendeu que o dispositivo legal deve ser interpretado de forma que o cônjuge supérstite concorra com os descendentes tão somente em relação ao patrimônio particular do falecido (3ª corrente antes demonstrada).
Em síntese, a Seção compreendeu que atinente aos bens comuns o cônjuge já recebe metade na qualidade de meeiro. Assim, se também herdasse tais bens, os descendentes do falecido restariam prejudicados na partilha.
Não obstante, a própria Seção reconheceu a complexidade da matéria analisada, perfilhando que pode ocorrer de essa opção, em outros casos concretos, ocasionar uma injustiça às partes, sendo completamente desastrosa. Contudo, o Ministro Relator realçou em seu voto a importância de “uniformizar a aplicação da lei federal indicando a interpretação que mais afeita ao sistema e que, na generalidade dos casos, produza o resultado mais aceitável”.
Dessa forma, independentemente da corrente acolhida pela Seção do STJ, conclui-se que a mencionada decisão é de suma relevância, pois, a priori, finda as decisões controvertidas nos Tribunais sobre o tema e, consequentemente, garante maior segurança jurídica nas relações.
Luciana de Abreu Miranda e Vitor Sepulveda Gomide
Sócios de Malka Y Negri Advogados
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